Um preocupante abismo cognitivo está se aprofundando na sociedade brasileira, uma realidade que se manifesta na maneira como crianças de diferentes classes sociais interagem com a informação. Essa lacuna é acentuada pelo crescente consumo de conteúdo digital fragmentado – vídeos curtos, memes e redes sociais –, que gradualmente substitui a leitura de textos mais complexos e aprofundados.
Um relatório recente do The New York Times alerta para uma tendência alarmante: o “efeito Flynn“, fenômeno que descrevia o aumento constante das habilidades de raciocínio e alfabetização ao longo das décadas, começou a se reverter. As quedas mais acentuadas são observadas justamente entre as populações de baixa renda, evidenciando uma profunda desigualdade digital no acesso e na forma de consumir informações de qualidade.
A “Junk Food Cognitiva”: O Impacto das Telas no Cérebro
O estudo compara o consumo excessivo de mídias digitais a uma verdadeira “junk food cognitiva“. Assim como alimentos ultraprocessados, esse conteúdo é amplamente acessível, altamente viciante e consumido desproporcionalmente por camadas mais vulneráveis da população. O resultado? Uma espécie de “obesidade cognitiva“, que molda um cérebro habituado à distração constante e à leitura superficial, sacrificando o desenvolvimento da concentração e do pensamento crítico essenciais.
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Desigualdade Digital: Mais Tempo de Tela, Menos Oportunidades
Dados concretos reforçam esta tese preocupante: crianças de famílias com baixa renda chegam a passar, em média, duas horas a mais por dia em frente às telas do que aquelas de famílias mais ricas. Essa disparidade amplia a desigualdade de oportunidades desde a infância, criando um ciclo de desvantagens. Além do tempo excessivo, o acesso a materiais clássicos e livros de qualidade é severamente afetado, dificultando o desenvolvimento de um repertório cultural rico e habilidades de leitura aprofundada.
“O acesso desigual à informação e aos recursos educacionais, somado ao tempo excessivo de tela, cria uma barreira significativa para o desenvolvimento cognitivo de crianças de baixa renda, perpetuando ciclos de desvantagem e tornando o ato de pensar criticamente um luxo cada vez mais distante”, destaca o relatório.
O Paradoxo das Elites: Restrição de Telas e Valorização da Leitura
Curiosamente, enquanto as plataformas digitais viciantes são amplamente consumidas, as elites econômicas e tecnológicas — muitas vezes responsáveis pela sua criação — adotam uma postura completamente oposta em suas próprias casas. Figuras proeminentes como Bill Gates, por exemplo, são conhecidas por restringir o uso de telas por seus filhos, incentivando outras formas de aprendizado e interação.
Nos Estados Unidos, escolas de elite que proíbem celulares e focam na leitura de livros clássicos, com mensalidades que ultrapassam os 30 mil dólares anuais, estão em alta. Nesses ambientes exclusivos, a capacidade de se concentrar e desenvolver um raciocínio profundo é vista como um bem precioso, que deve ser ativamente protegido e cultivado desde cedo. Este contraste sublinha a crescente divisão entre quem pode e quem não pode controlar a exposição digital.
O Pensamento Crítico: Um Luxo em Risco na Sociedade Atual
Enquanto a educação pública, que já enfrenta desafios com menos recursos e salas de aula superlotadas, luta para competir com a atração dos dispositivos digitais, a capacidade de desenvolver um pensamento crítico aguçado corre o risco de se tornar um luxo acessível apenas para uma parcela privilegiada da população.
Se essa tendência se mantiver, alertam os especialistas, as consequências para a sociedade serão profundas. Poderemos ter um eleitorado mais impulsivo, menos racional e extremamente vulnerável à desinformação e manipulação, consolidando não apenas uma desigualdade econômica, mas também uma perigosa desigualdade intelectual que afeta a própria base da democracia. É crucial refletirmos sobre como podemos garantir um desenvolvimento infantil equilibrado para todas as crianças.